Desafios enfrentados pelo paciente
com câncer atendido pelo SUS
A
jornada de um tratamento para o câncer é desafiadora desde o diagnóstico. O
impacto negativo da notícia, a reorganização do dia-a-dia para conciliar a
rotina de hospital com trabalho ou estudos, os efeitos adversos do tratamento,
a instabilidade emocional. Uma verdadeira ‘reviravolta’ da vida, que somente
quem está passando ou já passou por tratamento pode ter noção da dimensão.
O
cenário é por si delicado e requer do paciente entender as novas circunstâncias
de sua vida para levar o tratamento da forma menos dolorosa possível, sem
‘encerrar-se’ em detrimento da doença, mas respeitando os limites que o corpo
impõe.
Embora
não haja regras para a passagem pelo tratamento, informar-se sobre a doença,
manter uma comunicação clara e irrestrita com a equipe médica, buscar o carinho
e amparo das pessoas amadas e seguir à risca as orientações terapêuticas são
dicas que o Instituto Oncoguia dá aos pacientes.
Para
os milhares de brasileiros que anualmente usam o Sistema Único de Saúde para
iniciar um tratamento oncológico, os desafios vão além (e muito) dos naturais.
Para além dos desafios naturais
A
Constituição de 1988 determinou ser dever do Estado garantir saúde a toda a
população e, para tanto, criou o SUS (Sistema Único de Saúde), que se configura
como uma complexa rede de atendimento em que estados e municípios, orientados
por um fragilíssimo sistema de regulação, devem garantir atendimento de
qualidade aos 190 milhões de brasileiros, dos quais 140 milhões dependem
exclusivamente da saúde pública.
Nesse
contexto, milhares de pacientes com câncer enfrentam verdadeiras batalhas para
conseguir o tratamento. Tratamento que lhes é de direito.
A
odisseia, muitas vezes, começa ainda nas unidades básicas de saúde, as ‘portas
de entrada’ do sistema, com as dificuldades para conseguir consultas
primeiramente com generalistas e, depois, com especialistas e seus respectivos
encaminhamentos para exames.
UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE – UBS
Unidade
Básica de Saúde é a estrutura física básica de atendimento aos usuários do SUS,
onde a comunidade local consegue resolver a maioria dos problemas de saúde, com
qualidade e com mais rapidez. Isso porque os problemas de saúde mais comuns
passam a ser resolvidos nestas Unidades.
Cada
UBS é responsável pela saúde de todos os habitantes de uma determinada região
da cidade, chamada de área de abrangência. Todo planejamento das ações de saúde
da Unidade é voltado para esta comunidade, entendendo as situações
sócioeconômicas e priorizando grupos de risco.
A
gaúcha de Porto Alegre, Elaine Aparecida Rosa, 57 anos, é um exemplo: Ela
aguarda a cerca dois anos por uma consulta com proctologista. Filha de paciente
oncológica (a mãe faleceu ano passado com câncer colorretal) e, portanto,
cidadã que deve passar por exames periódicos de rastreamento, Elaine procurou
pela UBS de seu Bairro, Vila Cruzeiro (Unidade Básica de Saúde Vila Cruzeiro),
em 29 de novembro de 2010, ao sentir fortes dores intestinais e notar pequenos
sangramentos ao evacuar.
Atendida
por um clínico geral, a paciente que já havia sido operada de pólipos e
fissuras intestinais anteriormente, quando era beneficiária de plano de saúde,
foi orientada pelo médico a consultar-se com um proctologista, que poderia lhe
pedir exames de colonoscopia e sangue oculto nas fezes.
Centrais de marcação de consultas e
serviços de apoio diagnóstico e terapêutico
Destinam-se
ao gerenciamento das ações de saúde ambulatorial que não têm resolubilidade na
Atenção Primária à Saúde, isto é, no encaminhamento do usuário que necessita de
consultas com especialistas, de exames especializados ou de terapias. Para
garantir aos pacientes a melhor alternativa terapêutica, mesmo em situações de
demanda reprimida ou de escassez de recursos do município, é necessária a
presença do regulador.
O
regulador avalia a necessidade do caso pelo laudo médico, consulta a
disponibilidade assistencial mais adequada nas unidades de saúde mais próximas
e autoriza a execução dos procedimentos necessários, baseado nas evidências
clínicas e na Programação Pactuada Integrada (PPI), se o caso envolver
referências intermunicipais. (Regulação em Saúde – Coleção para entender o SUS.
CONASS)
Naquele
mesmo dia Elaine fez o pedido da consulta na UBS, e a longa espera teve início.
Passados quase dois anos, ela ‘bateu à porta’ da administração do posto e teve
a notícia de que “por uma razão ou outra, sua consulta não foi marcada” e que
teria de aguardar por um novo agendamento.
Ela
lembra que em 2010 as dores lancinantes a obrigaram a se automedicar. “Na época
do sangramento não tive outra coisa a fazer a não se ir à farmácia pedir
socorro. A farmacêutica me disse para usar o Proctyl, e foi o que eu fiz”.
Eliane
continuou esperando pela nova data da consulta e, atenta sobre os seus
direitos, protocolou reclamação na ouvidoria da Secretaria Municipal de Saúde
de Porto Alegre para, com a carta-resposta em mãos, ‘forçar’ o agendamento da
consulta.
A
resposta da ouvidoria dizia: (...) Solicitamos que caso o (a) paciente
necessite um atendimento de urgência, ele (a) deve procurar a sua Unidade de
Saúde de Referência ou um Pronto Atendimento ou Hospital. Se o seu caso for
avaliado pelo seu médico da Unidade como urgente terá sua consulta agendada com
prioridade. Converse com o seu médico para ver como está a sua situação atual
(...).
A
carta, generalista, fria, desatenciosa, não apresentou caminhos para a solução
do problema de Elaine, mas como o clínico geral do posto já conhecia seu
histórico, ela levou consigo o documento para fortalecer o seu pedido.
A
paciente entrou em contato com o Instituto Oncoguia contando seu caso e
informou que enviara a carta para a ouvidoria no dia 13 de junho. A entidade
recebeu e-mail da paciente relatando que conseguiu marcar a consulta para o dia
21 de junho.
Sem tratamento apesar do diagnóstico
São
Paulo é o estado brasileiro que apresenta as melhores condições de tratamento aos
pacientes do SUS. A iniciativa local da criação da APAC Paulista tem agilizado
o ritmo de incorporação de medicamentos e a ampliação dos recursos
disponibilizados aos cidadãos.
Ainda
assim, histórias de pacientes revelam que há situações gravíssimas acontecendo
no estado e, entre as razões, pode estar justamente o tratamento de alta
complexidade diferenciado que São Paulo oferece que acaba por atrair pacientes
de diversas partes do país causando um ‘inchaço’ no sistema. Não é incomum que
pacientes com diagnóstico de câncer demorem três, quatro (...), oito meses para
iniciar o tratamento, quando em clínicas particulares de excelência um paciente
não demora mais que uma semana para começar uma terapia.
A
aposentada Veneranda Caitano Cedon, 51 anos, moradora de Osasco, teve a
primeira suspeita clínica de um câncer em 2010, o diagnóstico de Adenocarcinoma
tubular de cólon e reto, com metástase de múltiplas lesões hepáticas e
pulmonares em fevereiro deste ano e, até poucos dias atrás, antes de recorrer
ao Instituto Oncoguia, aguardava para iniciar o tratamento no Centro de Alta
Complexidade em Oncologia do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Cacons e Unacons
As
unidades de saúde vinculadas ao SUS que realizam tratamento oncológico no
Brasil são cadastradas pelo Ministério da Saúde como Unidades de Assistência de
Alta Complexidade em Oncologia (UNACON) e Centros de Assistência de Alta
Complexidade em Oncologia (CACON).
Estes
serviços são constituídos por unidades hospitalares que dispõem de todos os
recursos humanos e tecnológicos necessários à assistência integral do paciente
com câncer, desde o diagnóstico do caso, assistência ambulatorial e hospitalar,
atendimento de emergências oncológicas e cuidados paliativos, sendo que nas
UNACON é oferecido tratamento para os cânceres mais prevalentesno Brasil e nos
CACON, tratamento para todos os tipos de câncer. (Secretaria da Saúde – Governo
do Estado de São Paulo).
Nas
diversas consultas pelas quais já passou no HC, sempre com diferentes
oncologistas, Dona Veneranda não foi informada qual seria seu tratamento e
quando este se iniciaria.
O
filho da paciente, Ademir Caetano, relata que a saúde da mãe vem piorando diariamente,
lembrando que há cerca de 50 dias ela conseguia “fazer algumas coisas”, como
cozinhar. “Mas hoje ela só se levanta para ir ao banheiro. Está fraca, sente
náuseas, muitas dores nas regiões dos tumores, febres e vômitos constantes”.
Nenhuma medicação, nem mesmo para tratar tais sintomas, foi indicada à
paciente.
Ademir
solicitou ajuda do Instituto Oncoguia no mês de maio e a entidade direcionou o
caso paciente ao ICESP. Consulta foi agendada para o início de junho e a
primeira quimioterapia marcada para o mesmo mês.
Exame pago em hospital público
O
aposentado Almerindo Marques Santos, 69 anos, residente no bairro de Guaianases
(SP), sempre cuidou da saúde e nunca se furtou a realizar os exames
determinados a cada fase da vida. É forte, saudável.
Em
2009 o exame de PSA detectou uma pequena alteração, que o médico justificou
como sendo “coisa da idade”; em 2010, mais um exame alterado e a idade avançada
continuara como vilã; no ano seguinte, em novembro, outro exame e o médico lhe
deu a guia para uma biópsia, que o aposentado, junto da filha Luzinete, levou
prontamente ao Hospital Santa Marcelina de Itaquera.
Pai
e filha saíram do hospital sem conseguir agendar a biópsia e retornaram em
janeiro e março de 2012, sem sucesso.
Preocupados,
resolveram pagar pelo exame e, por surpresa, o Hospital Santa Marcelina de
Itaquera, agendou a biópsia para o dia seguinte.
A
biópsia diagnosticou o câncer de próstata e a jornada de tratamentos se
iniciaria. “Nós acreditávamos que conseguiríamos marcar a consulta com o
urologista naquele mesmo dia. Não seria o natural, já que o resultado deu
positivo?”, questionou Luzinete. Mas a primeira consulta demoraria ainda três
meses a acontecer.
A
filha lembra que no dia marcado não pôde acompanhar o pai, que foi sozinho ao hospital.
Ele contou que foi absolutamente maltratado pelo médico, que disse, “É, você
tem câncer, mas vai ter que esperar na fila para a cirurgia”.
E
a nova consulta foi agendada apenas para outubro.
Luzinete:
“Fiquei indignada! Entrei em contato com a Secretaria da Saúde, que disse que
eu tinha que ir no Posto. Fui no posto, que me disse que não era com eles. Meu
Deus! Hospital sabe que meu pai tem câncer. Não fizeram a biópsia nele?”
A
família de Almerindo resolveu vender um carro para pagar pela cirurgia, mas foi
informada pelo Hospital que, caso pagassem, o paciente não poderia realizar as
outras fases do tratamento pelo SUS. A partir da então, a filha Luzinete partiu
para ação: enviou e-mail à Secretaria de Saúde contando seu caso, buscou na
internet por hospitais particulares com cotas para atendimento ao serviço
público e entrou em contato com o Instituto Oncoguia.
A
orientação da ONG foi que Luzinete pedisse um encaminhamento médico ao
profissional responsável pela biópsia e levasse ao Posto de Saúde a fim de
conseguir um relatório para dar entrada no Hospital A.C.Camargo.
A
filha marcou a entrevista com a assistente social do Hospital A.C.Camargo, que
ouviu o caso de Almerindo e disse que entraria em contato com ela em 15 dias.
Ao fechamento desta matéria, o prazo estabelecido não fora comprido, mas o
Instituto Oncoguia continua acompanhando o caso.
Questionada
sobre a saúde do pai, Luzinete diz que “fisicamente ele está muito bem e nem
mesmo parece que tem um câncer”. Porém, Almerindo está muito abalado
emocionalmente. “Saiu da casa dele e mudou-se junto de minha irmã. Disse que
sozinho não fica. Tem medo de morrer”.
Muitos outros casos
Diariamente
o Instituto Oncoguia atende pacientes e familiares com casos semelhantes aos de
Eliane, Ademir e Luzinete, prova de que o Sistema Único de Saúde não presta o
serviço que é de sua competência, ou de outra forma, o presta de forma
inadequada. Enormes filas, dificuldade em marcar exames e consultas e
‘peregrinação’ entre hospitais refletem as falhas nos serviços prestados pelo
SUS.
A
entidade tentou, por diversas vezes, agendar entrevista com representante da
Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, para entender, por fim, como funciona
o sistema de regulação em saúde no estado e no país; a assessoria de imprensa
não atendeu às solicitações.
Regulação
em Saúde será um dos temas de debate do III Fórum de Discussão de Políticas de
Saúde em Oncologia, que acontecerá no dia 25 de junho, em São Paulo.
Fonte:
Equipe Oncoguia
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